Dark Romance: A literatura ajoelhada diante do erótico
Um ensaio sobre a romantização da dor, o fetiche do tóxico e a estética do colapso literário;
O declínio da literatura começou quando deixamos de ler Clarice Lispector, Machado de Assis, Jane Austen e tantos outros para consumir qualquer obra que se autodeclara literatura — se é que ainda podemos chamá-la assim. O novo hype literário, o chamado “Dark Romance”, escancara esse abismo.
Esse estilo tomou posse das prateleiras entre 2019 e os dias de hoje. O Dark Romance, em sua origem, girava em torno de um “homem perigoso” — líder de máfia, chefe de cartel, ou algum fora-da-lei — que se apaixonava por uma mocinha ingênua, cor-de-rosa, que mal sabia o que era uma arma.
Um criminoso brutal que arrancaria cabeças pela sua amada.
Esse, ao menos, deveria ter sido o limite do Dark Romance.
Acontece que esse não foi o limite.
Eu, como leitora apaixonada por livros e literatura, já mergulhei fundo no universo do Dark Romance — especialmente naquele famoso aplicativo laranjinha. Conheci esse mundo meio sem querer, por causa dos shippers do grupo Now United.
E, confesso: me deixei levar. Mergulhei de cabeça nesse estilo. Me envolvi com as histórias, com os personagens, com o drama. Por isso, sinto que tenho algum local de fala quando trago essa crítica.
Quando foi deixado traçar a romantização da dor, o fetiche do tóxico e a estética de um prazer sexual deturpado de forma nojenta?
Esses são apenas alguns exemplos dessa nova era de leitores que se identificam como fãs de dark romance.
Ao meu ver, parece que, para escrever nesse estilo, é preciso gabaritar o Código Penal e ferir os Direitos Humanos — tudo isso em nome de um livro que se sustenta quase inteiramente no erotismo.
Como se a violência, o abuso e a toxicidade fossem apenas ingredientes picantes de uma narrativa “quente”, e não alarmes de um problema muito maior.
E se, por acaso, alguém acredita que isso é normal — ou pior, deseja viver essas situações na própria vida sexual — talvez seja hora de refletir. Porque há uma linha muito tênue entre o desejo fantasioso e o desvio da realidade. E quando essa linha se apaga, não estamos mais falando de literatura. Estamos falando de adoecimento.
É natural que existam fetiches ou desejos fantasiosos que passem pela cabeça. Mas, a partir do momento em que essas fantasias ganham forma em livros que descrevem, com todas as letras, situações de abuso, sequestro, assassinato, estupro e tantas outras violências — e pior, romantizam isso como se fosse amor — , já ultrapassamos a linha da ficção. Nesse ponto, não estamos mais diante de um romance sombrio. Estamos diante de um reflexo doentio de uma sociedade que consome o horror como entretenimento e o trauma como enredo.
Para ser mais clara, trouxe tópicos para serem debatidos e deixados bem claro a periculosidade desse limite no mundo literário.
Objeto ou Personagem? A grande representatividade feminina no Dark Romance parece estar reduzida à figura de objeto de prazer masculino.
Como já exemplificado anteriormente, a mulher é transformada em uma “cadela sexual” submissa, moldada ao desejo do homem, esvaziada de subjetividade.
Isso apenas reforça o discurso distorcido que o machismo e o patriarcado sempre usaram como argumento: a mulher como posse, a mulher como coisa.Mesmo dentro de um estilo sombrio, a literatura ainda deveria ter como mínimo a capacidade de provocar reflexão, divertimento ou aprendizado.
Mas, ao contrário disso, o que vemos em muitos desses livros é o oposto: o leitor sai mais traumatizado do que transformado, mais anestesiado do que sensibilizado. E, pior, com um preconceito sutilmente (ou não) plantado em relação ao que é o amor, o sexo e o próprio papel da mulher no mundo.O algoritmo do hype em cima de viralização de cenas problemáticas. A panfletagem sempre foi uma das formas mais eficazes de transformar livros e autores(as) em fenômenos. Mas, com o tempo e a ascensão das redes sociais esse panfleto virou uma máquina de distorção.
Livros começaram a ser vendidos não pelo que são, mas por trechos pinçados, estéticas forçadas e narrativas empacotadas pra agradar o algoritmo.Um exemplo claro é “É Assim Que Acaba”. A história trata, em sua essência, de violência doméstica, superação e traumas mas foi traduzida pelas redes como mais um “romance água com açúcar”.
Viralizou como se fosse leve, fofo, romântico — e não é.
Essa narrativa fez com que milhares de leitores chegassem até a obra esperando uma história de amor, e encontrassem um soco no estômago.Pior ainda é quando livros com temas sensíveis viralizam sem nenhum aviso de gatilho, sem cuidado mínimo com quem vai ler.
É a estética do choque, o marketing do trauma.
E, no fim, o que sobra é frustração, gatilho e um exemplo cruel de como a literatura está sendo moldada pelo consumo instantâneo e superficial.A romantização do sofrimento feminino. A romantização do sofrimento feminino se tornou uma estética. Sofrer virou sinônimo de amar. Ser humilhada, traída, machucada virou parte do “processo” até ser digna de ser amada por um homem quebrado, violento e inalcançável. É como se a dor fosse um degrau para felicidade, e não um alerta de que algo está errado. As personagens femininas são moldadas pra aguentar tudo caladas, para se despedaçarem com elegância, como se fosse bonito sangrar por amor. Mas o que ninguém diz é que essa beleza vendida é, na verdade, a fantasia do machismo pintada de romance. Não é amor. É violência embalada com laço rosa. E a literatura, que deveria libertar, se ajoelha ao fetiche da submissão.
E qual será o impacto na formação de leitoras jovens? O impacto disso tudo nas leitoras jovens é brutal e silencioso. Meninas de 13, 14, 15 anos estão crescendo acreditando que ser amada é ser machucada, que ciúmes doentios são sinais de paixão, que controle é cuidado. A ficção que consomem, muitas vezes, não ensina limites, só normalizam traumas. E quando a primeira relação real vier, talvez ela não consiga identificar o abuso, porque ele já foi romantizado mil vezes antes, página por página, capítulo por capítulo. A literatura, que deveria ser uma janela para o mundo ou um espelho onde elas se reconheçam com dignidade, virou uma sala de espelhos distorcidos, onde o tóxico parece encantador. E no fim, quem paga o preço é sempre ela: a menina que achou que amor era sinônimo de dor porque foi isso que ensinaram nos livros que deram a ela.
A Normalização da Violência Emocional. No gênero Dark Romance, muitas vezes, as personagens femininas são apresentadas como vítimas da violência emocional constante, mas são retratadas como sendo parte do "jogo" do amor. Esse tipo de narrativa cria uma percepção distorcida de que a violência emocional é algo normal e até desejável dentro de um relacionamento. O perigo disso é que jovens leitoras podem, inconscientemente, aceitar esses comportamentos abusivos como parte de uma relação saudável.
Esses são apenas alguns dos pontos que julgo urgentes porque o Dark Romance não precisa ser enterrado, mas sim reinventado. Precisa, com urgência, deixar de glorificar a dor, romantizar a violência e transformar a submissão feminina em troféu narrativo. Enquanto exaltarmos esse tipo de história sem crítica, sem reflexão, estaremos alimentando um ciclo perverso, onde a literatura não acolhe — ela fere. Que a nova geração de leitoras aprenda a distinguir fantasia de violência, desejo de desrespeito, e amor de adoecimento.
E, se por acaso você quiser mergulhar um pouquinho mais no que se passa pela minha mente, deixo abaixo alguns links de textos que escrevi. Sinta-se à vontade para ler.
Sim, e tem gente para defender. É literalmente um pornô, degrada e deturpa o próprio corpo e o corpo do outro. Deturpa o significado de sexo, conexão, respeito. Não deveria ser considerado literatura e muito menos ter algum incentivo. Sem contar do absurdo de que muitos começam a ler essa porcaria sendo menor de idade.
Eu tô chocada